São frequentes as situações em que coexistem na mesma pessoa a qualidade de gerente e de trabalhador de uma mesma sociedade por quotas. Tais situações podem surgir logo no momento da constituição da sociedade, em que a mesma pessoa é nomeada gerente e celebra um contrato de trabalho com a sociedade, ou no decurso da vida da sociedade, em que um seu trabalhador é nomeado gerente.

Esta situação gera, contudo, problemas jurídicos e práticos que nem sempre são fáceis de resolver. Na realidade, se, relativamente às sociedades anónimas, o Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) contém uma norma que resolve as questões relativas à cumulação na mesma pessoa das qualidades de trabalhador subordinado da sociedade e administrador, tal não sucede para as sociedades por quotas, o que tem gerado aceso debate doutrinário e jurisprudencial em torno da aplicação da norma prevista para as sociedades anónimas às sociedades por quotas. 

Assim, nos termos do artigo 398.º do CSC, durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedade que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem funções de administrador. Acrescenta-se ainda no referido artigo que quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade (ou em sociedades que com ela se encontram em relação de domínio ou de grupo), for trabalhador, o respectivo contrato de trabalho se suspende[1].

Em decorrência de tais normas, no caso de trabalhadores que sejam nomeados administradores das sociedades com que mantêm o vínculo laboral, os respectivos contratos de trabalho suspendem-se durante o período de exercício do mandato. Cessando o mandato de administrador, o contrato de trabalho volta a vigorar na sua plenitude[2].

Sucede que para os gerentes das sociedades por quotas não existe norma de teor idêntico, pelo que se mantém em aberto a discussão em torno do destino dos contratos de trabalho dos trabalhadores que são nomeados gerentes das respectivas sociedades.

E, no passado mês de Novembro, dois tribunais superiores pronunciaram-se em sentidos diferentes relativamente a esta matéria. No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (“TRL”) de 23/11/2023[3] decidiu-se que:

«Em princípio, não é compatível na mesma pessoa as posições jurídicas de trabalhador subordinado e de sócio-gerente de uma sociedade por quotas; só assim não será se se provar existir uma relação de subordinação entre sócio-gerente e a sociedade comercial, o que passa pela demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor.

Não se provando essa relação de subordinação, atendendo ao carácter de efectividade das funções de gerência considera-se cessada a relação laboral no momento em que o trabalhador passou a exercer as funções de gerente pois que terminou aí a subordinação jurídica dele à sociedade comercial

Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) de 23/11/2023[4] foi decidido que:

«O regime definido para os administradores das sociedades anónimas no art. 398.º, n.ºs 1 e 2, do CSC, não é irrestritamente aplicável aos gerentes das sociedades por quotas, em virtude de o modelo do tipo societário ser muito diferente, embora não possa desconsiderar-se, pura e simplesmente, esse corpo normativo.

Ponderada a ratio legis e os princípios gerais que estão subjacentes e afloram na norma contida no art. 398.º, n.º 2, do CSC, é de concluir que o aqui disposto em matéria de suspensão do contrato de trabalho se aplica às sociedades por quotas.

Seria dogmática e sistematicamente incompreensível – e com implicações práticas materialmente injustas – que o contrato de trabalho se suspendesse estando em causa uma sociedade anónima e, incoerentemente, se aplicasse às sociedades por quotas a solução (mais) extrema da sua extinção.»

Ora, se no Acórdão do TRL se sufragou o entendimento de que, salvo nos casos em que seja possível entrever a existência de subordinação jurídica entre o gerente e a sociedade (o que muito dificilmente sucede, em particular quando estamos perante sócios-gerentes), nem sequer ponderando a aplicação analógica do regime previsto no artigo 398.º do CSC, a nomeação como gerente poderá conduzir à extinção do vínculo laboral, já no Acórdão do STJ foi adoptado o entendimento – que se nos afigura o mais acertado – de admitir a aplicação analógica deste preceito, o que conduz à possibilidade de se reconhecer a subsistência dos dois vínculos em paralelo (ainda que com o contrato de trabalho suspenso), no caso de trabalhadores que sejam nomeados gerentes de sociedades por quotas.

Este é, efectivamente, um tema da maior relevância prática. Pense-se numa situação em que um gerente que também mantém um contrato de trabalho com a sociedade pratica um acto na qualidade de gerente que coloca irremediavelmente em causa a confiança nele depositada pelos sócios da sociedade. No caso de se adoptar a posição do TRL, uma vez que o contrato de trabalho se extinguiu, bastará fazer cessar a relação de gerência para pôr fim às relações contratuais entre as partes. Já se adoptarmos a tese vertida no Acórdão do STJ, teremos ainda que analisar se a conduta mantida pelo gerente é também apta a destruir a relação de confiança que está na base do contrato de trabalho. Neste contexto, para fazer cessar em definitivo as relações entre as partes para além da destituição do gerente, terá de se avançar com um processo disciplinar com vista à cessação do contrato de trabalho com invocação de justa causa. 

Departamento de Laboral

Hugo Martins Braz | Tiago Lopes Fernandez


[1] A norma distinguia consoante o contrato de trabalho tivesse sido celebrado há menos de um ano (caso em que o contrato de trabalho se extinguia) ou tivesse uma duração superior (caso em que se suspendia). O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019 declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma na parte em que determinava a extinção do contrato de trabalho. 

[2] Ou seja, caso se pretenda fazer cessar o contrato de trabalho simultaneamente com o vínculo de administrador, terá de existir uma causa específica para a cessação do contrato de trabalho (que é independente do vínculo decorrente da nomeação de administrador). Ficou, aliás, famoso no decurso do ano passado o caso de um acordo celebrado com uma administradora da TAP que também era sua trabalhadora que visava, precisamente, pôr termo a ambas as relações.

[3] Processo 1050/20.6T8VFX.L1-4, em que foi relator o Desembargador Alves Duarte.

[4] Processo 2529/21.8T8MTS.P1.S1, em que foi relator o Conselheiro Mário Belo Morgado.