Entre muitos outros, o país tem três problemas sérios e graves que merecem ser debatidos sem rodeios: 1) a recuperação económica e a estabilização financeira; 2) a continuidade de Jorge Jesus no banco do Benfica; 3) a crise das instituições. Temos estado todos demasiado concentrados nos dois primeiros temas. Sendo que, na verdade, ainda não encontrámos solução para nenhum deles. Mas relativamente ao terceiro – provavelmente, mais importante que qualquer um dos outros, pelo menos na perspectiva do Estado – andamos há anos a assobiar para o lado.

Esta crise não é apenas financeira ou económica. Antes dela existe uma falência moral e uma crise institucional profunda do próprio Estado.

A construção jurídico-constitucional do Estado português, debilitada pela própria fase revolucionária em que foi realizada, incentivou a confusão entre os conceitos de “democracia”, “crescimento económico”, “Estado de Direito” e “Estado Social”. Ainda hoje, estamos longe de clarificar os conceitos.

Com efeito, o maior propósito da construção democrática foi, nos loucos anos 70, a criação de condições de bem estar e de crescimento económico. Era isso a democracia. E o facto é que ainda hoje a convicção popular é a de que a vantagem da democracia sobre a ditadura é a criação de melhores condições de vida e de elevação dos índices sócio-económicos de um país.

Essa visão é errada e a factualidade confirma-o, sobretudo porque, em ditadura, Portugal atingiu taxas de crescimento económico que nunca atingiu em democracia. Aliás, na década de 60 Portugal deu um salto asiático em termos de crescimento económico e de melhoria de condições de vida. E, confrontados com este facto, que vantagens terá, então, a democracia sobre a ditadura?

Criar e fomentar a ilusão de que a democracia serve para que as pessoas vivam melhor é um acto criminoso. A democracia é a forma pura de governo, um sistema de legitimação e transparência políticas, assente numa lógica de pesos e contrapesos, de rédeas e freios, que a sustentam e lhe dão o equilíbrio necessário ao livre exercício da soberania popular.

O Estado Social não tem, pois, nada que ver com o Estado de Direito democrático. A confusão que se gerou entre os dois conceitos só serve para destruir a democracia e dar força a radicais e extremistas de qualquer orientação.

Foi por se ter criado essa confusão que a construção da democracia portuguesa falhou quando entregou ao Estado aquilo que devia ter ficado nos privados (a economia) e deixou às corporações aquilo que devia ter ficado no Estado (as instituições). Estes factos resultaram, como hoje facilmente verificamos, na falência institucional do Estado. E para resolver o problema, terá de ser levada a cabo uma verdadeira revolução institucional, reformando o Estado e as suas instituições e refundando o sistema judicial.

Aquilo que recentemente ocorreu num tribunal colectivo, em Lisboa, e cuja gravação está disponível no portal da Ordem dos Advogados, demonstra o actual estado de coisas. O sistema judicial, onde se incluem magistrados, procuradores, advogados, funcionários e outros órgãos que colaboram diariamente com a Justiça, vive numa realidade paralela; é um sistema obsoleto, carregado de parcimónias e excelências e envolto num manto de dignidade inquestionável, que, na verdade, todos questionamos ou devíamos questionar. É um sistema de desresponsabilização e de impunidade. É um sector fechado, corporativo, elitista – é um bricabraque judiciário.

É incompreensível, por exemplo, o papel que o Ministro da Justiça, seja ele quem for, tem em todo o sistema judicial. O Ministro da Justiça é o responsável do economato do sistema. É o gestor de funcionários, material de escritório, magistrados e agrafadores do sistema judicial.

O debate centra-se, na maioria das vezes, na reforma das leis processuais que, a cada reforma que passa, se tornam mais confusas, numa sobreposição temporal de aplicação legislativa que ninguém compreende, na escassez ou não de magistrados e no mapa judiciário.

Mas as discussões sobre o papel do Ministério Público, sobre o acesso à 1ª instância, sobre a agilização processual e a adequação das leis substantivas às necessidades do mundo real, económico e veloz, sobre a existência ou não de um Tribunal Constitucional ou sobre a criação de mecanismos efectivos de responsabilização de juízes, só muito raramente são abordadas.

Será, portanto, impossível atingirmos níveis razoáveis de sustentabilidade económica enquanto não se fizer uma revolução no quadro institucional do Estado. É a democracia que está em jogo. Antes fosse o Benfica.

Nuno Gonçalo Poças